quarta-feira, 30 de março de 2016

Que syrup é esse?

Era meu dia de ficar na cama até mais tarde. Marido, portanto, acordou e foi preparar o café da manhã. Só que fiquei naquele estágio entre o sono e o despertar, ouvindo o amanhecer dos dois. Ora dormia e sonhava, ora acordava e escutava conversas e barulhinhos matutinos, feito café sendo coado e talheres batendo de leve no prato.
Até que Arthur pergunta:
- Papai, que syrup é esse?
Aquilo entrou nas profundezas dos meus devaneios sonolentos e eu sabia que havia alguma coisa se debatendo debaixo da superfície idílica, alguma coisa que queria sair, que precisava sair. Syrup? Será que meu cérebro está preocupado com troca de códigos linguísticos a esta hora da manhã? Não pode ser. Será que estou em um estado tal de estresse que preciso controlar tudo o que acontece mesmo que eu saiba que tudo está bem e todos estão em segurança? Será que estou pensando na lista de compras quando deveria estar sonhando com massagens e piña-coladas à beira-mar? Será que eu sei de alguma coisa que eles também precisam saber?
SIM!
- Ei - gritei eu das fossas abissais de meu torpor sonolento -, isso aí não é xarope de bordo! Vocês estão colocando azeite temperado com alho na panqueca!

Lição do dia: se for reciclar potinhos de vidro, escreva bem grande no rótulo qual a NOVA substância que está ali dentro.

terça-feira, 29 de março de 2016

Ele é sempre assim?

É uma das frases que eu mais ouço. E eu nem sei por quê. Minhas olheiras deveriam bastar. Mas não bastam, e eu respondo pelo menos uma vez por dia: é, ele é sempre assim.

Um bólido, um dínamo, um ás, um foguete. Zuuuuuuum. Corre, pula, rola, grita, quer tudo agora, quer tudo rápido. Zuuuuuuuuuum. Já foi, não pode tirar o olho um segundo, caiu, levantou, tá lá de novo, já passou.

Ele é sempre assim?

Sempre. Mas não vai ser assim para sempre.
Vai crescer. Vai parar de correr, vai parar de rolar, vai se interessar por outras energias, outras maneiras de explorar o mundo. Pode ser que continue indômito. Pode ser que se transforme. Podem ser tantas coisas, que agora eu prefiro ficar com ele, do jeitinho que ele está, sem tirar nem pôr esses quatro anos que vêm chegando a passos largos: no rosto, no corpo, no cérebro. Quatro anos e ainda cabe no meu colo, embora pareça, cada vez mais, transbordar do meu coração.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Treta Park

Era um dia de sol. O parquinho, portanto, estava populado: duplas de irmãos corriam aqui, trios de amigos se balançavam acolá, Arthur pulava na caixa de areia. Tudo normal.
Até que o fantasma da treta, o Tretageist, chegou.
O Tretageist é primo do famoso Poltergeist, de quem tem um pouco de inveja e ciúme.
O Tretageist não traz pedras e nem arrasta móveis e objetos. Não! Ele, na verdade, se esconde atrás da polêmica, se alimenta da dinâmica pré-conceituada e de pataquadas e, em vez de se manifestar através de objetos, ele se faz presente em meio às pessoas. Sabe aquela frase infeliz que, assim que saiu da sua boca, você já sabia que ia dar treta com seu irmão? Foi ele. E aquele comentário da sua filha, na hora errada e para a pessoa errada? Ele também. Ultimamente, tretinha encontrou um novo habitat muito confortável e rico em alimentos, e lá tem ficado muitas horas do dia: o Facebook. É treta atrás de treta, de grupos sobre maternidade a páginas pessoais, passando por postagens de empresa e até mesmo chegando ao mundo acadêmico! Mas não se enganem, não. Tretageist não marca touca na vida real e basta um mísero descuido e ele  pá! – se manifesta. Em qualquer língua ou localidade geográfica.
Então estávamos nós no parquinho, fazendo as coisas normais de parquinho a saber: correndo descabelada atrás da criança, segurando o balanço que ia acertar a boca do garoto brincando de pega-pega, agarrando o tornozelo da garota que ia caindo do trepa-trepa etc.
Mas Arthur, possuído pelo ritmo da Ragatanga e pelo Tretageist, resolveu empurrar um moleque. Chamei atenção, tudo bem, vida que segue. De novo. Chamei atenção, alertei que era o segundo aviso, o terceiro ele sabe que é casa, parou, pediu desculpas. Foi brincar em outro canto. Mas, uma vez evocado o Tretageist, é difícil se livrar dele. Ele curte brincar com efeito dominó. Então o moleque empurrado pelo Arthur resolveu descontar a frustração de ter sido empurrado em outro garoto. Empurrou. Mas o garoto era mais velho, fez que não viu o Tretageist por trás dos olhos empesteados do moleque e seguiu adiante. O moleque foi atrás. De novo. Mas a mãe dele não chamou atenção, nem avisou, nem notou, na verdade. Então o garoto mais velho fez o que ele poderia fazer: empurrou o moleque, que desceu o escorrega chorando, gritando e urrando. 
A mãe, do outro lado do parque, gritou com sua voz poderosa: 
FULANO (não peguei o nome), ABRE ESSA SUA BOCA E FALA O QUE ACONTECEU EM VEZ DE CHORAR.
Cabeças se viraram para a mãe. Todo mundo naquele lugar viu o Tretageist ganhando corpo. Ficamos imóveis.
O moleque correu para a mãe, abriu a boca e falou. O quê, ninguém sabe. Mas a gente sabe que a mãe continuou no mesmo tom e volume: 
NÃO PODE EMPURRAR, VOCÊ TÁ CERTO. QUEM FOI QUE TE EMPURROU?
O moleque responde.
UM GAROTO MAIS VELHO?
Responde de novo.
QUEM É? MOSTRA PRA MIM?
A tensão crescendo. Mães e pais chamam seus filhos para mais perto. A mãe se levanta. O moleque vai andando até apontar um dedão bem apontado para o garoto mais velho.
EI, GAROTO, VOCÊ NÃO PODE EMPURRAR OS OUTROS.
O garoto nada.
GAROTO, TÔ FALANDO COM VOCÊ!
Pensei, meio assustada e bastante ansiosa, cadê a mãe dessa criança, pelamor?!
EI, GAROTO, OLHA PRA MIM, TÁ ME OUVINDO?
Nisso chega a mãe do garoto, esbaforida, sacoleja os braços para chamar a atenção do filho e... começa a fazer perguntas através da linguagem de sinais.

Bróder, o garoto era deficiente auditivo!

As mães conversaram. Dessa vez em voz baixa, não deu para ouvir, mas dava para ver que uma estava sem graça por conta do filho ter empurrado uma criança mais nova e a outra, por conta da deficiência tomada por falta de educação do filho da outra.
Os ânimos se acalmaram, elas ficaram uma meia hora conversando, as crianças todas foram empurrar novos garotos e garotas, Arthur brincou de dar socos e pontapés em duas menininhas, as menininhas eram mais da pá virada que ele, afastamos os indomáveis, Arthur foi brincar de pega-pega ou grita-grita com o moleque, o garoto foi ver passarinhos e assim seguimos a tarde de sol depois de mais um inverno enclausurado.
Tretageist se entediou, ou ficou com fome, ou ficou satisfeito com a treta alcançada e voltou para os memes/posts/discussões acaloradas sobre o futuro político do Brasil.
E nós, bem, nós agora temos um parque rebatizado: o Treta Park. Onde as treta-kids tretam umas com as outras alegremente.