quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Uma história triste

Eu estava em casa, sozinha, quando tocou a campainha, bem baixinho. Achei que fosse no vizinho e continuei o que estava fazendo. Péééé. De novo. Baixinho. Dessa vez me levantei porque pensei que poderia ser marido e Arthur voltando da escola uns minutos mais cedo do que o esperado. Nossa porta está com defeito, por isso abri a porta do apartamento para verificar se a porta do prédio tinha aberto. Ouvi vozes estranhas, em inglês, de homens. Ligeira, fechei a porta, passei o trinco e corri até a janela para ver se marido e Arthur estavam chegando. Lá fora, no jardim salpicado de folhas de outono, três policiais - dois homens e uma mulher - esperavam na frente das duas viaturas estacionadas diante do prédio.
Gelei.
Eu sabia o motivo de eles estarem aqui. Eu sabia porque a denúncia tinha sido feita por mim.

*

Aqui em casa às vezes é uma loucura e o lixo fica esquecido na cozinha até que começa a nos lembrar pelo olfato de que é hora de ir lá para baixo. Aconteceu há duas semanas. Eu trabalhando até duas, três da manhã, marido intenso no trabalho também e, para completar, ficamos impossibilitados de usar a porta de trás. É que pintaram o corredor dos fundos do prédio.
Todos os moradores ganharam um papel explicando os reparos e quanto tempo depois poderiam usar o espaço. Meu vizinho também ganhou um papel desses. Mas como não estava em casa, o papel ficou encaixado entre a porta e o batente. Meu vizinho viaja muito, então é normal ter uns papéis espetados na porta dele durante uns dias.
Levamos, enfim, o lixo para fora e dei uma bela faxina na cozinha, mas o cheiro continuava estranho. Limpei pia, banheiro e banheira. Ainda o cheiro. Vinha do nosso armário do quarto. Tirei sapatos velhos e coloquei para arejar, cheirei peça por peça, mexi umas coisas para ver se tinha uma comida escondida por Arthur no meio da bagunça. Nada. Então, ao passar pela porta do vizinho, além do papel espetado, percebi que o cheiro vinha de lá. Ele viaja muito, então pensei mil coisas, a mais plausível, porém, era que ele havia esquecido o próprio lixo dentro de casa, como nós fizemos por causa da pintura dos corredores.
Mandei mensagem para a administradora do prédio e ontem o rapaz esteve aqui, consertando outras coisinhas e batendo à porta, ainda com o papel espetado, do meu vizinho.
Meu vizinho simpático, porém monossilábico. Meu vizinho educado e paciente com as correrias do Arthur dentro de casa. Meu vizinho que tem por hobby tocar guitarra. Meu vizinho que assiste filmes sábado à tarde. Meu vizinho que nunca recebeu um amigo ou parente que eu tenha visto. Meu vizinho que morreu dentro do quarto e que só foi notado porque começou a, enfim, incomodar os vizinhos. Ou melhor, a vizinha. Eu.

Não conheço a história dele, mas o fim eu sei que foi triste. Solitário. Esquecido. Abandonado.
Não sei se morreu de causa natural ou se provocada. Não sei se usava drogas, se tinha doença crônica, se se acidentou ou se sofreu um mal súbito. Não sei se tinha família, amigos ou namorada. Não sei nem seu nome e, apesar de toda esta história, não sei nem o dia que morreu.
Pode ter sido há duas semanas, quando pintaram o corredor. Pode ter sido depois, quando comecei a caçar o cheiro pela casa. Pode ter sido em qualquer momento entre um episódio e outro.
Fiquei triste, fiquei sentida, fiquei profundamente abalada. Não sei ainda o que fazer com tudo o que pensei, vivi e senti, mas precisava registrar uma centelha da vida de um homem que morreu quase despercebido.